Leitura de notícia
Portal R7 - São Paulo (SP) ( Minas Gerais ) - SP - Brasil - 07-09-2018 - 19:02 -   Notícia original Link para notícia
Ícone do comércio em BH vai do glamour ao ostracismo

Dezenas de imóveis fecharam as portas, por diferentes motivos, na rua projetada para ser uma passarela de compras na capital de Minas Gerais
Planejada para ser o símbolo do varejo em Belo Horizonte, a antiga rua do Comércio está no ostracismo, realidade oposta à projetada por Aarão Reis (1853-1936). O engenheiro-chefe da construção da capital mineira idealizou a via, inaugurada em 1897, para ser uma passarela aberta de consumidores ávidos pelas compras. Foi assim por décadas. Mas, nos últimos cinco anos, dezenas de empresas fecharam as portas por aquelas bandas.

Entre os comerciantes resistentes, há quem calcule perdas de até 70% nas vendas em relação a 2013, quando teve início o fechamento em série de lojas. O R7 mostra o passo a passo de como a centenária rua se tornou um dos símbolos do varejo e como a fama não foi suficiente para evitar a atual derrocada no setor. Para isso, além de textos e fotos, o leitor está convidado a interagir com a reportagem por meio de ferramentas, como imagens em 360 graus e navegáveis.

Rua de histórias econômicas

A sequência de lojas fechadas na via destoa do passado imaginado por Aarão Reis. Ainda assim, a antiga rua merece capítulos epeciais nos livros que contam a história econômica do comércio de BH, setor que hoje reúne 65,5% do PIB (Produto Interno Bruto) e cuja boa parte deste percentual foi alcançada graças a estratégias adotadas, no passado, em encontros numa sala alugada por lojistas na mesma rua.

Corria junho de 1960, mesmo ano em que Juscelino Kubitschek (1902-1976) inaugurou Brasília, quando comerciantes de vários lugares de BH se reuniram na via. Daquele encontro surgiu o Clube de Diretores Lojistas, atual .

De lá saíram estratégias adotadas pelo setor até hoje. Em 1968, por exemplo, eles criaram o Termômetro de Vendas, indicador que, 50 anos depois, ainda orienta empresários sobre investimentos no próprio negócio. Meses depois, lançaram outra estratégia até hoje em vigor: as tradicionais campanhas promocionais em datas festivas.

O vaivém de pessoas no corredor era intenso. Anônimos de toda parte da cidade iam à via atrás de mercadorias variadas. Famosos também passavam por lá. Um deles foi o inventor do 14 Bis. O Pai da Aviação desfilou a bordo de um Landau. Em homenagem a ele, a via mudou de nome. A antiga rua do Comércio é a avenida Santos Dumont, formada por quatro quarteirões que ligam a praça da Rodoviária (Rio Branco) à da Estação (Rui Barbosa).

Abaixo, clique na imagem para ver, no mesmo local, o passado e o presente do corredor projetado por Aarão Reis.

Concorrência desleal

Mas a mudança do nome jamais afastou da antiga rua do Comércio a relação estreita com o varejo e o atacado em BH. Por ironia, um dos motivos que afetaram bastante os caixas das empresas de lá também se refere às vendas. Mas vendas classificadas de concorrência desleal.

A multidão de pessoas que percorrem a via diariamente atraiu tanto os "vendedores ambulantes profissionais", como são chamados aqueles que sempre ganham a vida nas calçadas, quanto pessoas que se juntaram ao primeiro grupo após perderem o emprego, vítimas da recessão econômica do início da década.

Quem percorre a Santos Dumont se depara com pequenas bancas de cigarros contrabandeados do Paraguai, negociantes de CDs e DVDs produzidos em fábricas de fundo de quintal.

Numa das pontas da avenida, a gritaria denuncia outra forma de concorrência desleal: o transporte clandestino de passageiros. É no entorno da praça da Rodoviária que homens e mulheres arregimentam clientes para empresas que oferecem o serviço de forma irregular, mas a preços bem abaixo dos praticados pelo mercado.

Nem sempre o progresso é para todos

Por outra ironia, justamente o transporte de passageiros legalizado prejudicou os comerciantes da rua. A localização geográfica da avenida levou a Prefeitura de Belo Horizonte a destinar uma missão importante para a Santos Dumont: abrigar uma rota do Move, o sistema de transporte público por ônibus, inaugurado em março de 2014 e que encurtou as viagens dos bairros ao Centro em razão das pisas exclusivas para os coletivos.

De acordo com a BHTrans, "a Santos Dumont funciona como uma estação aberta na área central, por onde passam, diariamente, cerca de 250 mil passageiros. A avenida é a principal via de entrada e saída para os corredores Antônio Carlos e Cristiano Machado e também funciona como uma conexão para a integração do metrô".

Diante disso, à época das obras, os lojistas apostavam que o Move traria bons lucros. Uma pesquisa da -BH (), elaborada um ano antes da inauguração do sistema, concluiu que 63,64% dos lojistas entrevistados estavam animados com o aumento nas vendas após a estreia dos novos ônibus.

Destes, quase 12% calcularam um crescimento de 41% a 50%. Outros 23,8% acharam que a alta seria de até 10%. Cinco anos depois, porém, o sonho se transformou em pesadelo para a esmagadora maioria.

Em razão da obra, o primeiro quarteirão, na esquina com a rua da Bahia, foi transormado numa espécie de alameda arborizada. Parte do asfalto deu lugar a um colorido jardim, moradia também de pequenos coqueiros.

A paisagem mudou na Santos Dumont. Mas as vendas não decolaram como os lojistas imaginaram. E por vários fatores. Um deles pelo fato de o Move alterar o sistema tradicional de embarque e desembarque de passageiros. Três plataformas imensas foram construídas sobre o canteiro central da via, pondo fim aos antigos pontos em frente às lojas.

Boa parte dos consumidores na Santos Dumont era formada por pessoas que aguardavam o coletivo na volta para casa. Dona Elizabeth de Almeida, que há 12 anos ganha a vida numa loja de doces, lamenta a queda nas vendas:

- As pessoas ficavam aqui em frente e a gente vendia bem. Éramos cinco funcionários. O fluxo de clientes diminuiu, as vendas despencaram 70% e o desemprego chegou aqui. Restaram eu e outro funcionário.

O recuo no faturamento da loja refletiu no salário dela:

- Recebo um vencimento fixo mais comissão. Com vendas fracas, o acréscimo também fica magro. Meu salário caiu de 50% a 60%.

O comerciante Josias Lisandro, com um ponto de venda quase na esquina com a rua da Bahia, também registrou perdas desde que os pontos de ônibus foram desativados:

- O faturamento reduziu em torno de 40%. As pessoas não ficam mais paradas, olhando o que é vendido. Elas já vão direto para as estações para embarcar.

Especialistas em trânsito, contudo, destacam que o Move é sinônimo de progresso para o transporte público da cidade. É o que diz Frederico Rodrigues, doutor em engenharia de transportes e diretor-executivo da ImTraff:

- Não devemos evitar de construir estações para que o embarque e desembarque de passageiros seja em nível e mais rápido (do que o sitema convencional) em função do comércio. Isso é uma verdade. Acredito que os lojistas estejam prejudicados, mas faz parte da evolução da cidade. Infelizmente, estes procedimentos de alteração no sistema de transporte promove mudanças no uso do solo de uma cidade. Por exemplo: porque a Savassi se desenvolveu? Porque, no passado, houve alteração na permissão do estacionamento (de veículos) na região Central de BH e as lojas foram migrando para lá. Surgiu um "novo" bairro. São efeitos do transporte no uso do solo e acho que, inevitavelmente, isso esteja ocorrendo na Santos Dumont.

A mudança, contudo, ainda divide opiniões entre usuários do sistema de ônibus e comerciantes. Confira no vídeo abaixo.

Moradia a céu aberto

Os bons resultados da antiga rua do Comércio também esbarram em um problema de cunho social: a população que mora nas ruas. Um levantamento mostra que, neste ano, o número de pessoas nesta situação em Belo Horizonte chegou a 6.000.

Alguns deles escolheram os passeios e canteiros arborizados da Santos Dumont como moradia e isto afasta pedestres e clientes da região, segundo comerciantes. Robson Luciano, gerente de uma rede de açougues que tem um ponto no primeiro quarteirão da rua, conta que a sensação de insegurança e a quantidade de objetos que dificultam a passagem pelo local são as principiais reclamações.

- Onde antes tínhamos as vagas para os clientes estacionarem ou os caminhões descarregarem os produtos, agora temos canteiros. Hoje, moradores de rua e usuários de drogas utilizam esses espaços como banheiro e para dormir.

Embora a prefeitura tenha intensificado nos últimos meses as ações de abordagem e acolhimento a essas pessoas, o supervisor de loja Jeferson Faria relata ter percebido, por inúmeras vezes, que alguém deixou de entrar nos estabelecimentos por se sentirem desconfortadas com a presença de quem vive em mendicância.

- Nós temos um grande número de lojas fechadas e espaços vazios na Santos Dumont. Isso junto ao fato da esquina com a rua da Bahia ser fechada, tem atraído um grande número de pedintes para cá.

Navegue na foto em 360 graus e clique nos símbolos de áudio para ouvir o quê pedestres e trabalhadores que frequentam a Santos Dumont acham sobre o assunto.

Custo com as mercadorias

Para amenizar a perda dos passageiros em frente às lojas, comerciantes defendem o retorno das áreas de carga e descarga, extintas em razão de o trânsito na via ser exclusivo do Move e de veículos que têm garagens no trecho como destino.

Algumas empresas, entre elas os supermercados BH e EPA, se mandaram de lá. Como os caminhões passaram a parar em quarteirões distantes da Santos Dumont, o custo para buscar os produtos encareceu os negócios.

Murilo Nigri, gerente de uma loja que vende no atacado, conta como a mudança prejudicou a empresa:

- Precisei contratar três meninos para buscar mercadorias nos caminhões, que param agora em outras vias. Ficou caro. Os clientes também desaparecem, pois também não podem mais parar o carro na porta.

Resultado: mesmo com a contratação de "três meninos", como ressaltou o gerente, a empresa reduziu o número de colaboradores de 28 para 14.

As vendas também recuaram na loja de brinquedos que Paulo Pacheco gerencia. Por lá, as demissões bateram na porta e o ex-vendedor foi promovido com o desafio de manter o negócio aberto. No entanto, com o dedo polegar apontado para baixo, ele lamenta o ostracismo que tomou conta da antiga rua do Comércio:

- Clientes que procuram muitos itens que nós não temos porque não vale a pena estocá-los. Quase não têm mais saída. Antigamente a empresa tinha um estoque enorme, hoje ele já não é assim.

Indenização que ainda não chegou para todos

Na época em que a Santos Dumont foi redesenhada para receber as plataformas do Move foi criada a Jai (Junta Administrativa de Indenizações). O comitê formado a partir de articulações da /BH e outros representates da categoria tem função de ressarcir os comerciantes de impactos causados pelas obras do sistema, sendo o Executivo Municipal o responsável pelo pagamento.

Em 2012, o órgão recebeu 30 pedidos de indenizações, mas seis anos depois, apenas oito deles foram atendidos. Para ter direito à reparação de até R$ 15 mil, os lojistas deveriam comprovar os danos com documentação da contabilidade. Na época, a Procuradoria-Geral do Município alegou que parte das solicitações foram negadas por falta de comprovação da perda nos rendimentos.

Reinventar é preciso

O nome e a paisagem do corredor comercial criado por Aarão Reis passaram por transformações no decorrer das últimas décadas. Os empresários que decidiram ficar por lá também tiveram que se reinventar para se adaptarem a essa realidade.

Robson Lanna percebeu isso e testou diferentes áreas até encontrar o seu novo espaço. Ele chegou na Santos Dumont com uma loja de calçados, fez reparos em sapatos usados e, com o tempo, passou a vender bijuterias. O que ele não sabia é que iria se reestabelecer em um mercado que já fazia parte da vida dele como hobby.

- Eu sempre gostei de comprar antiguidades para guardar. Chegou um momento em que percebi que poderia vender esses objetos e decidi abrir um antiquário. Hoje além de comprar essas peças, eu faço a restauração e as vendo.

Em meio à avalanche de cortes de gastos que passou pelos pontos comerciais da Santos Dumont, há ainda quem investiu em mais mão de obra para se manter de portas abertas. Esse foi o caso do empresário Osmar Lima que tem um estacionamento na avenida há 15 anos. Com o fim da circulação dos veículos de passeio na rua, ele viu o movimento cair, mas mostrou que para encontrar a solução, não poderia deixar se levar pela onda negativa.

- Eu não me arrependi de ter escolhido este ponto, mas nós tivemos que nos reinventar. Quando passamos por problemas como este, temos que mudar a forma de trabalhar. Tudo agora funciona do mesmo jeito, mas caiu o movimento e eu tive que colocar um funcionário a mais para chamar clientes na porta do estacionamento e evitar que a queda seja maior.


Palavras Chave Encontradas: Câmara de Dirigentes Lojistas, CDL
O conteúdo acima foi reproduzido conforme o original, com informações e opiniões de responsabilidade da fonte (veículo especificado acima).
© Copyright. Interclip - Monitoramento de Notícias. Todos os direitos reservados, 2013.