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O Globo Online (RJ) ( Economia ) - RJ - Brasil - 10-05-2018 - 07:14 -   Notícia original Link para notícia
O novo gosto do desencanto

Crise traz pessimismo de volta ao cotidiano dos argentinos e medo de reviver trauma de 2001



A escalada do dólar, que ontem teve alta de 0,83%, a perspectiva de a inflação passar de 25% este ano e o retorno ao FMI após quase 15 anos reacenderam nos argentinos o temor de que o país mergulhe em uma crise como as de 1989 e 2001 - um "trauma social profundo", segundo analistas. Os jovens voltam a pensar numa vida melhor no exterior. Em mais um dia de manifestações em Buenos Aires, grupos protestaram contra aumentos de energia e transportes. A pressão da oposição sobre o presidente Mauricio Macri agrava a tensão política. No Brasil, integrantes da área econômica veem risco limitado de contágio. A crise econômica da Argentina - com uma receita que inclui escalada do dólar, aumento da taxa de juros para o maior patamar do planeta e um novo pedido de socorro ao Fundo Monetário Internacional (FMI) - trouxe de volta à sociedade o desencanto. O que começou como uma leve ou moderada irritação pela falta de melhorias econômicas mais contundentes tornou-se, em muitos casos, decepção e temor pelo futuro.



JANAÍNA FIGUEIREDOIrritação. Comerciantes como Jorge Colazo sofrem com efeitos da escalada do dólar no preço de importados



Aos poucos, em conversas informais, voltam a ser ouvidas histórias como a de Lysandro Rodrigues. Formado em paisagismo, ele optou por trabalhar algumas horas como motorista de Uber nos últimos oito meses para complementar o salário, cada vez mais baixo por causa da inflação. E já faz planos de buscar um futuro melhor fora da Argentina.



- Estou avaliando seriamente me mudar para outro país, como México ou Espanha. Não acho que a situação vá melhorar na Argentina, e o custo de vida está cada vez mais alto - disse o jovem, um eleitor frustrado do presidente Mauricio Macri.



Para a socióloga Laura Goldberg, da Universidade Nacional de Buenos Aires, os argentinos estão assustados com a mudança:



- O fantasma da crise de 2001 (marcada pela fuga de divisas e o confisco bancário conhecido como "corralito") estão muito presentes, existe um trauma social profundo. Para muitos, o FMI sempre foi o vilão da história, e essas pessoas se perguntam qual será o plano B se este fracassar.



NEGOCIAÇÃO COMEÇA, MAS DÓLAR SOBE A 23,13 PESOS Enquanto as negociações do governo com o FMI começavam ontem em Washington, o dólar seguia em alta na Argentina. Subiu 0,83%, a 23,13 pesos.



Desde que a crise ganhou fôlego, a Casa Rosada lançou mão de uma série de medidas para estabilizar a economia. Uma delas representa um aperto de cintos nos gastos do governo: a meta de déficit fiscal passou de 3,2% do Produto Interno Bruto (PIB) para 2,7%, numa decisão que indica que o governo está comprometido com as contas públicas.



O cenário político, porém, se complicou com a pressão da oposição no Congresso - onde Macri não tem maioria - para aprovar um projeto de lei que limita os aumentos de tarifas de serviços públicos, como energia e transportes, e que o presidente já antecipou que vetará. Ontem, a capital teve mais um dia de protestos. Do lado de fora do Parlamento, manifestantes de partidos da oposicorrigia ção, movimentos sociais e sindicatos criticaram o pedido de crédito ao FMI e a política de Macri.



A votação no Congresso ocorre em meio a negociações entre o governo e as companhias de petróleo para o congelamento das tarifas de gasolina e diesel por um 60 dias. De janeiro a abril, os combustíveis subiram 14%.



Na avaliação de Sabina Frederic, professora da Universidade de Quilmes e antropóloga do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet), o país tem uma verdadeira "compulsão nacional" por apostas de que a Argentina vai repetir crises do passado:



- Em momentos como este, nascem fantasias vinculadas ao passado. Vi amigos postando fotos com os filhos em redes sociais com a legenda: "bem-vindo a sua primeira crise".



As conversas nas redes sociais e nas ruas contrastam com a declaração do chefe de gabinete de Macri, Marcos Peña, número dois do governo. Ele afirmou que a situação atual - o governo evita falar em crise - nada tem a ver com turbulências passadas. Mas os argentinos reclamam dos efeitos da inflação alta - que pode superar 25% este ano - no bolso.



A rotina de muitos argentinos mudou. Ontem, em seu caderninho de anotações, o comerciante Jorge Colazo, que há 30 anos tem uma loja de ferramentas no bairro de Palermo, em Buenos Aires, valores de produtos que precisa encomendar. Na última semana, eles sofreram aumentos de até 12% empurrados pela alta do dólar. Em seu sistema arcaico de contabilidade, Jorge, que atravessou todas as crises econômicas sofridas pelo país ao longo de três décadas, foi obrigado a atualizar os preços de muitos itens importados, altamente sensíveis ao câmbio.



- Para você ter uma ideia, 30 quilos de cola para cerâmica custavam 156 pesos na semana passada. Agora, saem por 168 pesos - explicou, enquanto apagava e escrevia de novo em seu caderno.



Nos últimos dias, Colazo reajustou uma longa lista de produtos, já que o dólar passou de 20,50 para 23 pesos ontem. Ele diz não ter outra opção a não ser transferir a escalada para o consumidor final.



- Não tenho alternativa - diz Colazo, acrescentando que economizaria em dólar se pudesse.



SABE AQUELA SENSAÇÃO DE 'JÁ VI ESSE FILME'? O comerciante já viu tudo. Sua pequena lojinha de Palermo se manteve aberta até mesmo durante a hiperinflação de 1989, quando o país suportou um aumento de preços anual de 3.079%. A crise de 2001 também o prejudicou, principalmente pela gravíssima recessão e queda abrupta do consumo. Depois de tudo isso, resume: - Sabe aquela sensação de "já vi esse filme?" A crise, desencadeada pela falta de confiança dos mercados num país que, como o próprio Macri admitiu, depende de financiamento externo, pode adquirir contornos mais graves para os argentinos. O pequeno empresário Andrés Mendibil, dono de uma rede de seis lojas de decoração, está preocupado com a combinação de queda do consumo e reajustes de produtos importados.



- Cerca de 60% do que vendemos vêm de fora, e, na última semana, os preços subiram 10% - conta Mendibil, que tem 30 empregados e ainda mantém planos de abrir novas filiais. - O ano começou difícil. O consumo vem caindo em até 40%. Você percebe que as pessoas não têm dinheiro para gastar, sobretudo depois do dia 20 de cada mês.



Ele, como a grande maioria dos argentinos, sempre poupou em dólares, um dos problemas estruturais do país. A Argentina depende de financiamento externo, e os cidadãos mantêm uma cultura de economizar em moeda americana que acentua ainda mais essa dependência. Quando as dúvidas começam a surgir, quem tem dinheiro para poupar se refugia no dólar. Nos primeiros dois anos de Macri, o clima de relativa confiança permitiu ao governo se financiar a taxas razoáveis, o que trouxe tranquilidade. Agora, muitos argentinos temem reviver as crises anteriores.





Empréstimo à Argentina passaria de US$ 30 bilhões





Negociações devem durar 6 semanas. Brasil vê impacto apenas comercial



"A Argentina é um país vulnerável do ponto vista das contas externas, tem inflação elevada. São desafios que o Brasil não tem mais" Fábio Kanczuk Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda



-WASHINGTON E BRASÍLIA- O início das negociações entre a Argentina e o Fundo Monetário Internacional (FMI) indicam que o valor pode superar os US$ 30 bilhões inicialmente projetados por analistas, após o presidente Mauricio Macri anunciar que, depois de quase 15 anos, o país voltaria a recorrer ao Fundo. E, pelo formato do empréstimo pedido pelos argentinos - o mais tradicional do FMI, oferecido desde 1952 -, haverá condições para liberar os recursos.



Ontem, na capital americana, houve a a primeira reunião entre Nicolás Dujovne, ministro da Fazenda argentino, e Alejandro Werner, diretor do Fundo para o Hemisfério Ocidental. Hoje, Dujovne se reunirá com Christine Lagarde, diretora-gerente do FMI. Em nota, o governo argentino informou que as negociações devem demorar cerca de seis semanas e dependerão da visita de uma missão do Fundo a Buenos Aires. Não se falou oficialmente em valores.



Um acordo stand by de alto acesso indica que a nação vai pedir valores além dos limites normais, que variam de 145% a 435% da cota do país, dependendo do prazo, de 12 a 36 meses. A cota da Argentina no Fundo equivale a US$ 4,5 bilhões. Mas fontes econômicas em Washington afirmam, sob condição de anonimato, que o valor necessário para acalmar investidores deve superar, com folga, os US$ 30 bilhões.



Nessa modalidade, sempre há condicionantes para o empréstimo. A questão é se o Fundo exigirá do país algo além das reformas já propostas por Macri, o que poderia comprometer o crescimento. O fato é que o governo argentino e o FMI já descartaram a possibilidade de usarem a linha de crédito flexível, espécie de "cheque especial", concedida de forma mais rápida e sem condicionantes, mas com o limite de US$ 30 bilhões - mais um indicativo de que o valor deverá superar esta cifra.



Os argentinos podem pedir um acordo preventivo, ou seja, sem o saque imediato de recursos. Nessa modalidade, o país tem a sua disposição um "colchão", cujo objetivo é apenas tranquilizar os investidores estrangeiros. E teria ainda a garantia de que o FMI aprova suas políticas econômicas, o que controlaria a volatilidade dos mercados. RISCO LIMITADO DE CONTÁGIO Para a economista Monica de Bolle, pesquisadora do Peterson Institute, Macri agiu rápido ao buscar o FMI antes que a situação piorasse ainda mais.



- Desde 2015, a Argentina está fazendo um trabalho hercúleo para consertar a economia após os governos Kirchner, que deixaram o país sem um banco central efetivo, sem regime de metas de inflação e até sem dados oficiais da economia. A mudança está sendo gradual, mas, dada a exposição externa, a vulnerabilidade mundial prejudicou o país - explica.



Ela não vê riscos, a curto prazo, de o Brasil precisar de algum tipo de socorro como a Argentina:



- O Brasil tem grande reserva, e praticamente todo o endividamento nacional está em moeda local.



O governo brasileiro vem acompanhando de perto a situação na Argentina, segundo o presidente do BNDES, Dyogo Oliveira. Ele considera que o país vizinho está "no caminho correto" para sair da crise, com uma agenda de reformas para melhorar a situação fiscal:



- As decisões que eles estão tomando são acertadas, estão no caminho correto.



Outros integrantes da área econômica, no entanto, afirmam o risco contágio para o Brasil é limitado. O secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Fábio Kanczuk, fez questão de ressaltar as diferenças entre os dois países. O Brasil tem um déficit em conta corrente de 0,6% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto a Argentina tem um saldo negativo de 5% do PIB. A inflação brasileira está projetada em 3,49% para 2018, e a da Argentina está hoje em 20%. Além disso, o Brasil tem âncoras fiscais para segurar a dívida pública, como o teto de gastos. Já o país vizinho não tem "nenhuma disciplina fiscal".



- A Argentina é um país vulnerável do ponto vista das contas externas, tem inflação elevada, o que significa que vai ter de passar por uma recessão para se ajustar. São desafios que o Brasil não tem mais - diz Kanczuk.



Segundo ele, o risco para o Brasil seria comercial. Nas contas da secretaria, uma queda de 10% no PIB argentino teria um impacto negativo de 0,05% na taxa de crescimento brasileira.








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