Leitura de notícia
O Globo Online (RJ) ( Economia ) - RJ - Brasil - 16-08-2015 - 11:43 -   Notícia original Link para notícia
Quando menos tem de ser mais

Com alta de preços, consumidor troca marca líder por opção mais em conta, muda o cardápio para receitas que 'rendem mais', pesquisa preços e corta supérfluos na hora de ir às compras


"A classe C levou um tombo em confiança. Depois do que experimentou, em melhorias de condições de vida e ganho de renda, é frustrante a expectativa de deixar esse caminho de melhora"
Dorival Mata-Machado Diretor do instituto Ipsos


Inflação e recessão podem levar a um retrocesso nos avanços sociais, afirmam especialistas



MÔNICA IMBUZEIROAperto. O casal Marlene e Mario Almeida, de Queimados, transferiu a lanchonete aberta em 2012 para a garagem da casa da família. Endividados, eles cogitaram vender o carro


A recessão, a alta da inflação e o aperto do crédito estão levando a nova classe média a adiar sonhos para manter o padrão de vida, informam GLAUCE CAVALCANTI, MARCELLO CORRÊA e DOUGLAS MOTA. Na lista de cortes para ajustar o orçamento, o ingresso dos filhos na universidade, a compra da casa própria e até os planos de abrir um negócio ficam para depois. Para Marcelo Neri, ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos e especialista no tema, "há sinais de que a classe média diminuiu". Em entrevista a FLÁVIA OLIVEIRA, Neri pondera que dificilmente todas as conquistas da última década serão perdidas. A crise não estava nas contas da família Almeida. Há dois anos, Mario e Marlene Almeida, de Queimados, Baixada Fluminense, resolveram abrir a própria lanchonete, embalados por uma economia que, embora já desse sinais de desaceleração, ainda resistia - cresceu 2,5% em 2013, ante um horizonte de recessão de até 2% este ano. Hoje, o sonho de empreender perdeu o brilho. Com o freio no consumo no país, as vendas do negócio despencaram 70%, passando de R$ 500 para R$ 150 por dia de fim de semana. Ao mesmo tempo, a conta de luz da loja subiu mais de 65%, saltando de R$ 160, em dezembro passado, para R$ 267 em junho. Resultado: o espaço, alugado por R$ 600 mensais, precisou ser fechado, sendo substituído por uma estrutura mais modesta na garagem de casa.


A história da família Almeida é um retrato do que vive a classe C atualmente. Mais vulnerável, sente mais os efeitos da alta da inflação e dos juros. Com o orçamento familiar encolhendo, há corte de gastos e aumento do endividamento. Caso o cenário de recessão persista, as conquistas socioeconômicas da última década estarão ameaçadas, avaliam especialistas ouvidos pelo GLOBO. Por ora, para evitar o retrocesso, a classe média faz bicos para manter suas conquistas e adia sonhos - do projeto de ampliar o próprio negócio à compra do carro zero quilômetro, dos supérfluos na cesta de consumo ao investimento em educação superior.


- Fui obrigado a fazer um "bico" numa transportadora, e ganhava R$ 1.500 por mês - conta Mario de Almeida, motorista de ônibus aposentado, que parou de prestar o serviço após o diagnóstico de problemas cardíacos. - Chegamos a colocar o carro à venda, mas desistimos por causa da minha saúde.


O esforço para ampliar a renda vem de uma necessidade comum às famílias da classe média: pagar dívidas. Os Almeida somam dois empréstimos consignados no valor de R$ 16 mil, contratados em 2012 e que devem ser quitados ano que vem. Mario recebe aposentadoria de R$ 1.700, de onde sai a parcela para pagar esses débitos. Sobra pouco mais de R$ 1 mil. Por mês, a família desembolsa R$ 540 para pagar o imóvel adquirido pelo Minha Casa Minha Vida três anos atrás. O financiamento se alonga por mais 22 anos. Pesa no déficit doméstico um empréstimo de R$ 7 mil obtido junto a familiares, além do cartão de crédito, cuja dívida pulou de R$ 800 para R$ 2 mil em quatro meses.


'QUEM PROVOU MEL NÃO VOLTA AO MELADO'


Com menor margem de manobra para acomodar reajustes de preços, a classe média tem mais dificuldade para pagar as contas em dia, explica Marianne Hanson, economista da Confederação Nacional do Comércio (CNC). Pesquisa da entidade mostra que a fatia de famílias endividadas com renda de até dez salários mínimos R$ 7.880) subiu de 58,8% para 63,3% em 2015. Nos lares com rendimento superior a dez salários, a expansão foi de 50,8% para 55,4%. A inadimplência no grupo de menor renda saltou de 19,8% para 24,1% de janeiro a julho, segundo a CNC. No grupo acima de dez salários, passou de 8,6% para 9,8%.


Parte da explicação para o quadro está na perda de poder aquisitivo, especialmente nas famílias com renda de até 2,5 salários mínimos (R$ 1.970), considerada a faixa mais vulnerável da classe C. A inflação dos últimos 12 meses ficou em 9,61%. Entre famílias de renda menor, ela chega a 10,31%, segundo o economista André Braz, da FGV, com base no Índice de Preços ao Consumidor, calculado pela entidade.


Despesas com itens básicos pesam mais no orçamento de quem ganha menos. O grupo de alimentação e bebidas, que responde por 25% do índice oficial de inflação, representa mais de 30% da cesta de produtos consumidos pelos mais pobres.


- Se a inflação subiu 10%, a renda das famílias dessa classe recuou em termos reais. Na prática, eles precisam desembolsar mais dinheiro para consumir a mesma cesta de bens e serviços de um ano antes - explica Braz.


O peso da inflação já fez os planos da técnica de laboratório Flávia Rezende mudarem. Moradora de Inhaúma, Zona Norte do Rio, adiou o projeto de substituir o Gol ano 2000 - parado na garagem à espera de conserto - por um zero quilômetro. As viagens foram cortadas:


- Está tudo mais difícil para quem é pobre. A última vez que viajamos foi para a Região dos Lagos, queríamos ter feito uma viagem melhor - diz Flávia, que trocou a casa alugada por um imóvel menor e próprio, após reajuste do aluguel em 50%.


Na família do funcionário público Reinaldo Oliveira, dois sonhos típicos da nova classe C precisaram ser adiados. A entrada do filho na faculdade e a compra da casa própria.


- Em fevereiro, teria como pagar a mensalidade do Pedro. Mas o aluguel subiu quase 65%. Pensamos em partir para a compra da casa própria, mas não é viável pagar a entrada ou valor das prestações.


Há ainda uma crise de confiança, pondera Dorival Mata-Machado, do Instituto Ipsos. A queda na renda e a retração no mercado de trabalho seguram os gastos. O esforço é para manter as conquistas:


- A classe C levou um tombo em confiança. Depois do que experimentou, em melhorias de condições de vida e ganho de renda, é frustrante a expectativa de deixar esse caminho de melhora. É como se diz em Minas Gerais: quem provou mel dificilmente volta para o melado.


Para Renato Meirelles, presidente do Instituto Data Popular, a classe C está empenhada em fazer o ajuste doméstico pois não vê saída para a crise. O lado positivo é que, ao mesmo tempo, se vira para manter o patamar de consumo conquistado:


- A classe média se vira sempre. Está acostumada a contornar dificuldades e se sai melhor na crise. Encontra uma forma de complementar a renda, faz hora extra, arruma uma segunda atividade. Faz rodízio de contas, num mês paga o crediário; no outro, a conta de luz. A crise é forte, mas não há indicativo de encolhimento da classe C. Isso só aconteceria com o desemprego em torno de 15%.


'PERSPECTIVA DE FUTURO PREOCUPANTE'


Mas, se a classe média ainda não encolheu, muitos dos seus planos para o futuro foram deixados de lado. Faltam recursos para pagar mensalidades escolares, sobretudo em curso de nível superior. E os jovens estão entrando no mercado de trabalho para reforçar o orçamento familiar. A Educafro, ONG que mantém uma rede de cursos de pré-vestibular para afrodescendentes e famílias de baixa renda, registra evasão de 30% no primeiro semestre, conta Frei David, à frente da entidade:


- A evasão preocupa. A perspectiva de futuro que o povo pobre está projetando para si é preocupante. Um dos problemas é os governos não incluírem a gratuidade de transporte público para estudantes de pré-vestibulares comunitários.


O aperto nas finanças, diz ele, leva jovens já na universidade a desistir ou a adiar o curso. A ONG tem uma rede de instituições de ensino conveniadas, que oferece bolsas a estudantes. Mês passado, a Unicastelo, de São Paulo, rompeu o contrato, levando centenas de alunos a deixarem a faculdade, diz Frei David:


- Só para a Unicastelo enviamos 1.065 alunos em 2013 e 2014. Este ano, mais de 600 abandonaram seus cursos. Houve suspensão de bolsa, aumento súbito das mensalidades, além do corte do Fies, que atingiu em cheio os pobres, e a crise econômica. Enviamos contra-notificação à UniCastelo, contestando a rescisão em 18 de julho. Não obtivemos resposta. Vamos fazer uma ocupação da universidade.


A recepcionista Jennipher Nascimento, de 20 anos, abandonou o curso de Odontologia na Unicastelo, iniciado em 2014:


- Comecei com bolsa de 50%, pagando R$ 570. No meio do ano, a regra mudou. E metade da mensalidade seria paga pelo Fies. Como isso não se confirmou, teria de pagar R$ 1.100. Sem desconto, não dá.


A Unicastelo argumenta, em nota, que a crise atinge o segmento educacional. E destaca "o agravamento das dificuldades causado pelas alterações realizadas pelo governo federal na sistemática do Fies, privando milhares de alunos que pleiteiam uma vaga nas instituições de ensino de prosseguirem com seus estudos, acarretando perda de receita considerável para as instituições, obrigando-as a rever estratégias". Nesse sentido, a universidade rescindiu o contrato com a Educafro e com as outras instituições com as quais mantinha convênios. Ressalta, porém, que a medida não afeta alunos da ONG já beneficiados.


Frederico Abreu, diretor financeiro da Kroton, maior grupo de educação privada do país, afirmou, na semana passada, que "existe um potencial de aumento da inadimplência". A empresa trabalha em planos de controle da evasão de alunos diante da queda da renda da população e das mudanças no Fies.


Num cenário de aperto nas contas, a consultora de negócios Fernanda Alves cogita trocar a faculdade presencial por outra à distância, no qual a mensalidade custa um terço do valor. Em 2010, ela iniciou o curso de publicidade na Unigranrio. Fez apenas um semestre. Desde então, teve dois filhos e está construindo uma casa:


- Assim que tranquei, deixei três meses em aberto. Só consegui pagar no ano passado. Tentei bolsa ou desconto para não parar, já que meu trabalho exige curso superior para que eu seja promovida. Ahora de ir às compras é, para o consumidor da classe C, a de encarar a realidade: o dinheiro no bolso já não é suficiente para encher o carrinho como antes. Com a renda garfada pela inflação, a nova classe média tem encontrado alternativas para lidar com a crise. Busca promoções, compra menos, evita supérfluos, pesquisa mais.


Essa é a receita da produtora de eventos Elma Lúcia Antônio. Com renda familiar de R$ 4 mil, ela tenta manter as compras de mês na faixa dos R$ 600. Da última vez, no entanto, não conseguiu cumprir a meta.


PARA LIMPEZA, SÓ O CLORO


Acabou gastando cerca de R$ 620 e diz que levou menos do que gostaria:


- Não uso mais vários produtos de limpeza. Para economizar, passo cloro em tudo.


Este ano, 28 categorias estão perdendo espaço na cesta de consumo da classe C, ante cortes em 22 na AB e 11 na DE, segundo dados da Nielsen. Outro parâmetro do freio nas compras é que 64% dos supérfluos têm presença decrescente nos itens comprados pela classe média, enquanto produtos mais básicos avançam 56%. A meta é comprar o necessário e na medida do consumo.


Fazer poucos produtos renderem mais é lema da cantora Noêmia Duque. A inspiração vem da infância. Baiana que mora no Rio há 20 de seus 44 anos, ela hoje usa as receitas da mãe que, na infância, precisava alimentar sete filhos:


- Não dava pra fazer bife todos os dias. Minha mãe fazia omelete, e a gente achava que era um manjar dos deuses. Hoje, faço risoto no lugar de moqueca para render mais.


De acordo com a Nielsen, a classe C gastava 15,1% mais do que recebia em 2013. Do ano passado para cá, essa taxa encolheu para apenas 2,9% a mais que a receita, reflexo do freio no crédito. Os reflexos no consumo são imediatos.


- Em 2015, a classe C estabilizou o número de idas ao ponto de venda e o aumento do tíquete médio. E há mudança no consumo. A categoria de acesso, quando a pessoa compra um produto que nunca consumiu, parou de crescer. E ela só faz a troca por um produto de qualidade superior ao que usa se enxergar vantagem real na troca - explica Natalia Uliano, analista de mercado da Nielsen.


SEM CEREAL NO CAFÉ DA MANHÃ


Substituir marcas mais caras por mais baratas foi a estratégia encontrada pela técnica de laboratório Flávia Rezende, que cortou supérfluos. Nem mesmo o cereal matinal pedido pelo filho de 13 anos escapou da tesourada.


- Estou substituindo as marcas, principalmente. Hoje fiz compras e troquei a marca líder, que estava R$ 4,95, por outra que saiu por R$ 2,99. Meu filho adora cereal, e não estou podendo mais comprar - diz ela.


Outras estratégias são a compra de produtos de marca própria das varejistas, com preço até 30% menor, e o uso de encartes de promoções para garantir o melhor preço na boca do caixa, diz o consultor de varejo Marco Quintarelli.


Apesar do mau momento, a classe média deve continuar comprando este ano. Segundo Marcos Pazzini, sócio da IPC Marketing, o gasto médio dos domicílios da nova classe média baterá R$ 42,8 mil em 2015. O valor é 24% superior ao calculado para 2014, mas o avanço é menor que o das outras classes sociais, menos afetadas pela crise.



- A classe C ainda está resistindo bravamente à crise. Mas, a partir do momento que os níveis de emprego começarem a diminuir, pode ter uma menor participação no potencial de consumo brasileiro - avalia Pazzini. NA WEB http://glo.bo/1NgTM8e Vídeo: Na crise, classe C economiza mais nas compras


Nenhuma palavra chave encontrada.
O conteúdo acima foi reproduzido conforme o original, com informações e opiniões de responsabilidade da fonte (veículo especificado acima).
© Copyright. Interclip - Monitoramento de Notícias. Todos os direitos reservados, 2013.